NA VASTIDÃO DO MUNDO
Belarmino Mariano
Ainda era cedo da manhã, o sol dava seus primeiros rodopios em direção as nuvens, na estrada e distante de casa a mais de uma semana, ele pensava na família.
Sem sinal, distante de tudo e sabendo dos riscos desse novo mundo, ele empurrou o pé, pois a rodovia estava pouco movimentada, devido a pandemia de coronavirus, que obrigava quase todos ao isolamento doméstico.
Na cabeça uma velha canção de Belchior, conseguia tocar seus lábios e ecoava em sua mente solitária como se fosse um mantra budista.
"Não quero lhe falar
Meu grande amor
Das coisas que aprendi
Nos discos"...
Ele queria entender o que Belchior tinha aprendido nos discos e como discos poderiam ensinar alguma coisa para alguém?
Ele não sabia de onde vinha aquela canção de sua juventude e, aos 59 anos, dos quais 25 havia se passado, batendo estradas e conhecendo a vastidão mundo. Mas naquele instante, a velha canção continuava a bolinar sua mente, revirando as suas lembranças.
"Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa"...
Ele pensava em casa, nos filhos e na mulher distante, mas se refugiou em si e percebeu que estava sonhando. Era um sonho de memórias do passado e, sozinho, naquele instante, lampejos mentais lhe diziam que viver era melhor que sonhar, então amar era um sonho que precisava ser vivido. Mas distante dos que tanto ama, sentiu um embrulhar das ideias e um nó na garganta. Essa distância afetiva acabava com ele.
A música que martelava em sua cabeça não era de agora, era de tempos sombrios, era de sua juventude e falava de amores, mas também de temores.
"Por isso cuidado meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado prá nós
Que somos jovens"...
Ele não entendia o que Belchior queria dizer e, em seu pouco estudo, achava que poderiam ter bandidos na esquina e, os seus poderiam está correndo riscos, mas também lembrou da época da Ditadura, perseguindo os jovens e prendendo gente, pois, em sua memória veio um sacolejo que ele e mais três amigos haviam levado da Polícia Militar em 1978. Um policial ainda disse: - Todos prá casa, seus comunistas de bosta!
Ele nem sabia o que era um comunista, mas naquele instante, a memória lhe revelou que estava aprendendo com aquela canção. Os sinais estavam fechados para os jovens.
Caramba, tudo parecia fazer sentido, mas só agora, distante de casa, na estrada, sozinho, sentia falta daqueles que tanto amava. Ele percebeu que gostava de músicas antigas, aquelas canções que havia aprendido nos discos. "Como nossos pais", aquela música de Belchior, como uma cantinela insistente, ainda estava agarrada aos seus pensamentos.
"Para abraçar meu irmão
E beijar minha menina na rua
É que se fez o meu lábio
O meu braço e a minha voz
Você me pergunta
Pela minha paixão
Digo que estou encantado
Como uma nova invenção
Vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
O cheiro de nova estação
Eu sinto tudo na ferida viva
Do meu coração"...
Caramba! Caramba! Caramba! Uma enxurrada de lembranças e memórias iam banhando sua mente. Enquanto seus olhos lacrimejavam, debulha fragmentos de lembranças. Primeiro dos três filhos, um a um, depois a esposa, agora com 52 anos, mas também as memórias difusas e atemporais lhe traziam imagens de sua amada Luísa Helena, a namorada aos 17, aos 19 anos, mas também de sua Helena madura e linda como sempre. Ele agora tinha um filho com 29 anos, uma moça com 26 e uma jovem com 19 anos.
Para completar a família, a netinha Priscila completava o quadro dos amores e sonhos de sua vida, estavam todos naquela velha música, que a sua mente insistia em cantarolar.
Esse turbilhão de memória e imagens que aquela canção havia despertado, agora criava uma conexão de tempos, em instantes, em ondas e vibrações que ele, sem saber explicar, só sentia e,
na memória das lembranças, ele via sua jovem amada aos 19 anos, lembranças de beijos roubados e da felicidade que cruzavam os sinais fechados. Nesses lampejos, vinha sua filha caçula, que era a imagem esculpida da mãe e a ideia de que o novo sempre brota.
"Já faz tempo
Eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Esta lembrança
É o quadro que dói mais...
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo, tudo, tudo
Tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como Os Nossos Pais..."
Na longa estrada, ainda cintilava em sua mente, momentos da vida, distâncias e presenças, longas ausências e o trabalho cotidiano, quase sempre distante de sua Alto Alegre, cidadezinha de Pernambuco, lugar de suas ausências, denunciava o quanto tempo perdido em estar, quase sempre, afastado dos seus.
Na BR 101, mesmo distante de casa, em meio a uma pandemia de coronavirus, Jorge Matias de Andrade, contava os instantes e os quilômetros que lhe separavam da mulher, filho, filhas e netinha. No paralama do seu velho caminhão, reluzia a frase:
VIAJO PORQUE PRECISO VOLTO PORQUE TE AMO!
(Para todas as pessoas que, por profissão, quase sempre, ficam isoladas e distantes das pessoas que tanto ama).
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