Chove Dentro do Meu Coração
Por Joana Belarmino
Nossas casas da infância eram sempre pequenas. De taipa. Uma sala, um quarto, uma cozinha, uma pequena dispensa. O vento zunia nos tijolos aparentes. A chuva vinha nos espiar à noite, pelas goteiras do telhado.
De noite a sala virava quarto das cinco, seis, sete, oito crianças. Dormíamos em redes. Os lençóis, cheirando a sabão e anil, eram de sacos de açúcar.
Nossos sonhos eram tão pequenos quanto os pedaços de bala de açúcar que nossa mãe nos dava. A economia da minha mãe via uma bala de açúcar como um lanche grande. Com sua faca de cozinha, ela partia uma bala para cinco crianças.
Nossos sonhos eram tão pequenos quanto aqueles pedaços de bala. O natal passava depressa. O ponto alto era quando a sala virava dormitório, e nós, nas nossas redes, falávamos e falávamos sobre papai Noel.
Não vou mentir. Muitas vezes deixei meu pequeno chinelo perto da janela. De manhã, quando ia ver, ele estava gelado e sozinho. Nunca me importava. O que me alimentava eram as conversas da noite. A antecipação, o sonho.
Um dia meu irmão Dedé me enganou. Eu era a criança menor. Aquela em quem passavam pitos, aquela que os irmãos mais velhos botavam pra brigar com Manuel, aquela que sempre caía primeiro.
Um dia meu irmão Dedé me enganou. Se juntou com os outros e me contou que havia um lugar encantado, e que me levariam lá. Um lugar encantado, onde se flutuava, onde se ouvia uma música linda, até não poder mais.
Eles seguraram minhas mãos. Dedé dum lado, Manuel do outro, os outros irmãos caminhando junto da escolta. Caminhei em transe, antevendo aquele lugar encantado, estranhando já, as pedras minhas conhecidas, os tocos e garranchos que todos os dias eu macerava com meus pés.
Chegados lá, eu já havia saído de mim. Flutuava, em algum habitat belo e desconhecido.
Aí eles me deram de beber uma água mágica. Eu então escutei a música, depois de haver sorvido aquele líquido.
Quanto teria durado aquele encantamento? De repente escutei o estrondo de gargalhadas. Despertei. Eles então contaram que haviam me dado água que minha mãe usara para cozer o milho do cherém.
Não me importei. Não fiquei magoada. Eu tinha ido lá, tinha escutado a música. Não me importei. Eu tinha ido lá. Eu tinha habitado por minutos um lugar inventado.
As vezes eu atacava de garota travessa. Dedé concentrado, trabalhando na construção da sua fazenda, feita de ossos e pedras. Dedé tangendo o gado lá para dentro. Gado feito de pedaços de pedra.
Eu vinha como o vento que zunia. Como um torpedo grande. Chegava e chutava a fazenda. Chegava e espalhava o gado. Meu irmão me atalhava no meio da estripolia. Puxava meu cabelo. Eu ria alto e ele recomeçava sua faina de fazendeiro.
Dedé era meu companheiro de caminhadas na mata próxima ao roçado onde meu pai trabalhava. Unidos por um sipó de marmeleiro, ele na frente, eu atrás. Me lembro da voz dele, pausada, calma. Não me lembro do que conversávamos, só do som da voz dele. Puxo pela memória, é a lógica que me acode. Por certo falávamos sobre a rolinha, a acauã, o redemoinho.
No campo, tudo fala. As flores silvestres exalam seus cheiros, há água correndo por entre pedras, há redemoinhos.
Ficávamos encantados com o eco das serras. É como um gravador estereofônico. Você fala, e lá na frente, muito longe, o eco repete o que você disse, com total fidelidade.
Eu, Manuel, Belar, Luzia, a gente se revezava conversando com o eco, ou então gritávamos todos juntos.
Gritávamos, gritávamos, até que um grito maior nos sequestrava para a normalidade. Era nossa mãe a chamar para o almoço. Chegávamos em casa, com cheiro de sol, para comer o feijão macassa, com farinha e torresmo de porco. Todos sentados no chão, comendo o feijão com gosto de coentro, o torresmo crocante entre os nossos dentes de infância.
A gente amava os dias de chuva. No sertão, a chuva avisa muito antes que vai chegar. O vento fica encarniçado, a terra rescende a fogo e água, os animais e as pessoas se agitam.
Eu ficava enlouquecida. Rodopiava pelo quintal, com a cara exposta à fúria do vento.
A chuva sempre chegava de noitinha, nós já em nossas redes, os trovões estralejando nas serras, minha mãe desatando “Santa baiba são Geromo”, enquanto desfiava o rosário.
O dia seguinte era de festa. O riacho virava rio, os tanques de pedra sangravam, o açude também. A gente ia brincar na pedra do sino, toda lavada de chuva.
A pedra do sino ecoava. A gente não entendia aquilo. Uma pedra grande, provavelmente um cristal, que ecoava como um sino.
Passávamos horas percutindo aquela pedra. Um dia meu pai descobriu uma caverna, para onde nos levava, enquanto trabalhava no roçado.
Eu amava aquela caverna, com sua brisa suave, seu silêncio e as tardes encantadas que lá passávamos.
Não me lembro quando, mas um dia, um acontecimento insólito marcou a vida da família. Meus irmãos mais velhos, os irmãos cegos, iriam para a escola estudar. Duas palavras estranhas na boca da minha mãe: Escola, estudar.
Aí eu conheci a solidão. Falava com ela na minha voz de menina, e o vento, as pedras, os arbustos da caatinga, os pássaros e os besouros respondiam.
Depois chegou a minha vez. Ninguém manda no tempo. Eu tinha seis anos, e um dia, me vi na frente da casa, com meus irmãos. Eu também iria para a escola, estudar.
Me lembro de meu pai ter me segurado no colo, me lembro de me sentir maior, no colo do meu pai. Me lembro de ele ter dito, com sua voz pausada, fifia, você é pequena ainda. Quer ficar em casa?
Me lembro dos meus olhos cegos cheios de lágrimas, e da minha voz, tremente: Eu vou pai. Me lembro da saudade aportando em meu peito como uma estaca grande. Me lembro de escutar músicas pela viagem toda. Me lembro de ter nojo das músicas. Me lembro de vomitar. Me lembro de o único lugar seguro ser o colo do meu pai.
Chegamos. Pela primeira vez senti medo de dormir. Senti medo de acordar e não ver mais o meu pai, de não mais sentir o seu cheiro de fumo de rolo.
24 de maio. Meu irmão Dedé me enganou de novo. Na terça-feira, 12 de maio, enquanto falávamos ao telefone, ele me disse, com voz firme: Tá tudo em ordem, viu? Meu irmão morreu na quarta-feira, e nós ficamos lacrados em nossas casas, com as estacas da saudade plantadas no peito.
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