Caguei

Por Maria Homem*
Um homem diz 'caguei' e, dias depois, foi parar no hospital justamente por não conseguir ir ao banheiro.
(Publicado originalmente na Folha SP, 18.jul.2021).

Um homem forte, lindo e poderoso, um homem imorrível, imbroxável e incomível disse, do alto de sua segurança, “caguei”. Como quem diz “não tô nem aí”. Como quando estamos no quarto ano da escola e você fica nervoso quando a menina chega perto. Aí tira a carta da manga: “você não me atinge”. Você, do baixo da sua insignificância, sua reles mortal, não atinge o deus soberano que plana acima de tudo, acima de todos. Caguei.
Acontece que uns dias depois esse homem foi parar no hospital. E por quê? Justamente porque não estava conseguindo cagar. Por mais que quisesse, por mais que tentasse, por mais que sofresse. Mesmo fazendo direitinho o seu papel "superior messiânico", a verdade apareceu nua e crua, seu corpo berrava e o país inteiro descobriu: não estou conseguindo cagar. Olha que curioso: “não caguei”. Ou seja, a verdade é que estou cagando de medo. Medo da punição por eventuais crimes cometidos, passiva e ativamente –negligências, vacinas, tributos, fundões eleitorais, que boiada você quer para hoje?

Aqui a polissemia da língua portuguesa não muito culta nos ajuda a interpretar as variantes possíveis do medo e da coragem, uma vez que “caguei” é o oposto de “caguei de medo”. Para variar, nosso homem dizia uma coisa e fazia o seu contrário. Essa a metodologia predileta, sua e dos seus. Ao invés do macho potente, encontramos o garoto acuado cujo corpo desmentia seu “protesto viril”, para usar a inspirada expressão de Alfred Adler, discípulo de Freud.

Aqui temos uma aula maravilhosa de psicanálise aplicada, com direito a incursões no estilo coaching, como “o corpo fala” ou “o poder da palavra”. Poderíamos também falar sobre o fio do significante para o qual Lacan nos chamou a atenção, demonstrando que o inconsciente é estruturado como uma linguagem e que real, simbólico e imaginário se entrelaçam. Mas estamos em uma coluna de jornal, só aponto e sigo adiante.
Como infelizmente estamos cansados de saber, a lista de referências ligadas a cagadas é vasta: cocô, cocozinho, cu, merda, bosta, xixi e demais escatologias. Nosso personagem não cessa de brincar nessa seara. Em defesa dele, devemos lembrar que o universo “anal” é muito importante de ser atravessado, inclusive para a constituição da moralidade. Ele faz a passagem da lógica oral, de mistura e entrelaçamento com o outro, para uma dinâmica de maior separação, do limite e da lei. Por quê?

A criança, quando começa a operar o controle dos esfíncteres, se dá conta de algo muito importante: há o dentro e o fora, o eu e o outro, o agora e o depois. Há a delimitação e o território. Tem que fazer cocô aqui nesse penico (e não na pele/fralda; e muito menos pela casa toda). Sei que é difícil a angústia de separação mas vou te ajudar, vamos “falar tchau pro cocô”. É sério, tem até livrinho para criança nos ensinando a ensiná-las a dar esse grande passo que é poder se separar de seu primeiro produto e grande objeto, o cocô.
Estamos falando também do longo processo de ritualização das “boas maneiras”, a linha da polidez, da higiene, da limpeza, e da introjeção dos afetos do asco e da vergonha. Norbert Elias também nos brindou com uma análise detalhada do processo histórico.
O pequeno ser evolui na conquista do seu próprio contorno e da existência da alteridade, assim como da distinção entre o banheiro e a sala, o privado e o público. E também da gênese do comportamento moral. Afinal, estamos falando de limite, de pactos, de lei. O que pode e o que não pode. Assim se funda a civilização.
Limite, alteridade, civilização, verdade.
O teatro da virilidade vai durar até quando? Está ficando curioso dizer “caguei caguei”, ficar posando de macho viril (ou de mártir) e ao mesmo tempo cagar no pau.

Para fechar com a chave de ouro que por vezes a vida nos oferece: um dia, o filho primogênito do nosso herói estava no meio do tiroteio mental de um debate político e o que conseguiu foi cagar nas calças. Literalmente.
Enfim, a família definitivamente tem problemas com cocô, limite e a lei.
*MARIA HOMEM
Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da alma" e "Coisa de menina?".
contato@mariahomem.com
@maria.homem

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