As Redes Sociais e a 'e-democracy'
(Le Monde Diplomatique Brasil
Online - AMBIENTE VIRTUAL 02/06/2025).
As redes sociais e a ‘e-democracy ’
Na e-democracy, não surpreende que o comportamento e o discurso político procurem se adaptar de forma mais profunda à opinião pública.
As redes sociais interferem diretamente na vida democrática. Sua interferência é quase onipresente, pois elas atuam no plano do imaginário político e do simbólico. Constroem fatos autônomos, estruturam o discurso e condicionam a opinião pública. Vivemos na era da ágora digital.
Em grande medida, a verdade e o julgamento político transitam pelo espaço virtual e possuem vida própria. As Revoluções Coloridas(1), a eleição de Trump e Bolsonaro e o Brexit são exemplos claros desse novo ponto de inflexão da democracia contemporânea. Tecnologias novas e antigas se confundem, enquanto a expansão da e-democracy se apoia na intensa intersecção entre o universo virtual e o modo de vida tradicional.
Todos sabemos que não há verdadeira separação entre o real e o simbólico (Manuel Castells). Mas a ideia de um mundo real autônomo e impermeável às transformações digitais ainda encontra lugar na nossa forma de pensar. É a sociedade que herdamos de nossos pais e avós. Trabalhamos, viajamos, vamos ao médico; estudamos, enfrentamos o trânsito, namoramos ou compramos uma casa. É comum a tentativa de diferenciar o virtual e o real.
Somos parte de uma realidade palpável, concreta, analógica e digital ao mesmo tempo. E o nosso mundo é também o mundo da política e da democracia, que ganha vida e sentido prático através do imaginário e do simbólico. No plano político, todos os fatores capazes de dar forma à opinião pública fazem parte da sua realidade. O fato político ganha ou perde força no ambiente virtual ou nas ruas. A política se impõe onde as pessoas (con)vivem.
As redes sociais – principal palco da democracia atual por causa da sua força nas eleições -, alteram o comportamento e o discurso político porque atuam diretamente na formação do imaginário, do simbólico e da opinião pública. Na e-democracy, não surpreende que o comportamento e o discurso político procurem se adaptar de forma mais profunda à opinião pública. A chegada ao poder depende da mobilização eleitoral das massas e esta mobilização basicamente ocorre com o digital ou a partir dele.
Recentemente, "uma influenciadora depôs perante o Senado em uma CPI que investiga as apostas digitais no país (2)". Em plena CPI, um ambiente formal, investigativo e constrangedor para quem depõe, um senador pediu para fazer uma selfie com a jovem. Uma inversão de papéis que só se explica pela força das redes e pela busca de benefícios eleitorais. Os seguidores votam e são cada vez mais sensíveis aos seus ídolos digitais.
Na democracia idealizada e instituída pela Constituição de 88, um parlamentar não deveria alterar seu comportamento por causa de uma jovem que vende produtos na Internet e se notabiliza pela exposição do seu estilo de vida. A relação entre os governantes e os governados deveria se pautar por interesses, valores morais e necessidades. Mas a e-democracy incorporou, de forma inédita na história, as emoções, as fakes news e a manipulação visual como fonte da ação política. “Em tempos de redes sociais, contra memes e fake news parece haver poucos argumentos” (Lenio Streck).
Essa inversão de papéis ocorreu na CPI porque houve, nos últimos anos, uma mudança silenciosa entre os usuários das redes sociais. O estilo de vida digital tornou-se o principal objeto de consumo desta nossa confusa sociedade do entretenimento. O alcance dos desejos virtuais parece não ter fim e é quase universal. “(…) quando satisfeita uma necessidade, outra é criada” (Edmundo Arruda Júnior). E uma das principais consequências do estilo de vida digital é a decadência da capacidade e da disposição para refletir.
A política não funciona sem a busca do convencimento social, qualquer que seja a referência ideológica: progressista ou conservadora, pacifista ou beligerante, democrática ou autoritária. A política é uma atividade que estabelece a conexão entre o discurso do poder e a sociedade. E na opinião pública está sua força motriz. O espaço público do qual a democracia depende, desde os gregos antigos, ainda existe. “Já não há protagonistas: só há coro” (Ortega y Gasset).
A e-democracy criou um ambiente político no qual a opinião pública praticamente se converte numa vontade inconsciente da multidão. A ação política tem que lidar com novos patamares de desindividualização, comportamento de manada e contágio emocional. No entanto, se a e-democracy gerou esse alheamento do mundo, ela também deu origem a uma intensa participação política. Cabe a nós encontrar o ponto de equilíbrio e aprimorar a experiência democrática.
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*Agassiz Almeida Filho é advogado, professor e autor dos livros Fundamentos do Direito Constitucional (Forense, 2007), Introdução ao Direito Constitucional (Forense, 2008), Formação e Estrutura do Direito Constitucional (Malheiros, 2011) e 10 Lições Sobre Carl Schmitt (Vozes, 2014).
Artigo Republicado integralmente - https://diplomatique.org.br/as-redes-sociais-e-a-e-democracy/
(1) https://www.novacultura.info/post/2024/12/20/a-armadilha-das-revolucoes-coloridas
(2) https://veja.abril.com.br/coluna/veja-gente/o-pior-da-semana-o-papelao-de-virginia-fonseca-na-cpi-das-bets/
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