Cuba como um purgatório onde tudo pode ser um pouco normal
Por: Diego Pessoa*- 26/07/2021.
Os grandes gestos de solidariedade que vimos a ilha cubana protagonizar,
nos últimos anos, a despeito das várias condições socioeconômicas, não foram
suficientes para colocá-la nos holofotes dos telejornais mundiais. Não importa
que tenha exportado médicos ao mundo; ensinado uma medicina profilática que
influenciou sistemas como o SUS; participado de ações humanitárias como na
crise do Ebola e, agora, do coronavírus; que tenha produzido vacinas próprias
(são cinco como a Abdala e soberana II) e oferecido mesmo ao turista ignorante
que a crítica; em suma, a lista é grande.
De onde vem esse interesse tão grande em Cuba, uma pequena ilha que não atrapalharia em nada a vida dos que queiram viver e/ou morrer sobre os grilhões capitalistas e seus fetiches, que se ancora numa liberdade restrita e incipiente?
A não ser que a grandeza de Cuba advenha dela representar um símbolo, que todos achavam que jazia sem vida: o espectro do comunismo, da solidariedade, do bem comum.
Estes termos, por estarem muito poluídos pela desinformação, acabam atrapalhando o entendimento. Para aclarar: o comunismo seria o bem comum universal. O bem-estar social acima do lucro privado; a reconstrução das relações internacionais baseadas na solidariedade e não no oportunismo de derrubar adversários e exaltar aliados; a apropriação equitativa sobre os produtos e tecnologias legadas pelo trabalho, ciência e conhecimento; enfim, o comunismo levaria às últimas consequencias uma máxima muito repetida, mas por poucos compreendida: a todos conforme suas necessidades e de todos conforme suas possibilidades. Tal quadro ideal seria o comunismo materializado na sociedade planetária.
Mas o que Cuba tem a ver com isso? Por que o espectro cubano incomoda tanta gente e todos os meios de comunicação que, ao se calarem em relação ao seus altruísmo e êxitos, com as manifestações, não perderam tempo em taxá-la de "ditadura comunista"? Isso significaria uma tentativa de, por tabela, revogar a potência do comunismo e também eternizar a esfinge capitalista, colocando o capitalismo como destino inexorável? Como tal pensamento é a-histórico, tecemos estas considerações por considerarmos os limites e possibilidades trazidas pela histórica sociedade cubana.
No texto "Vivir para contarla" (referência ao livro de Gabriel Garcia Marques), que escrevi, há cerca de seis anos, quando voltava de viagem a Cuba, não exitei em arriscar uma avaliação sobre o que se passava na ilha, bem como o que se projetava para o futuro, com uma tendência à reabertura, algumas aproximações de países como o Brasil e sinalizações de suavizar o embargo pelos EUA, durante o período Obama:
"Após 8 dias em Cuba, posso contar algumas experiências que tive, sobretudo em Havana. Entre tantas, como enxergar paisagens constituídas de casas e automóveis antigos, as que mais me causaram espanto foram as conversas com o povo cubano. Não com os dirigentes ou os chefes do poder, mas as pessoas comuns que caminhavam pelas ruas da capital, seja vendendo frutas, catando papelão e/ou simplesmente passeando. Creio que no modo de vida de tais sujeitos está a chave para entendermos o que se passa no país socialista e o que se projeta para o futuro com o fim do embargo. A fala mais significativa que identifiquei versava sobre a complexidade de entender Cuba neste instante, pois para esse intento se fazia necessário compreender algumas relações sociais existentes na cotidianidade do país que, em substância, não se distinguem das existentes num Estado de economia aberta como o Brasil, ainda que sejam distintas as formas de organização social e política entre ambos. Neste sentido, entendi que não se trata de ser favorável ou contrário ao modelo cubano, mas de compreender tal realidade a partir de suas contradições, possibilidades e limites(de recursos causados pelo embargo e naturais), mas também pelas conquistas proporcionadas pela Revolução, especialmente em relação saúde e educação(só para ficar em dois exemplos inquestionáveis). Cuba deve ser pensada no contexto mundial, onde as relações sociais predominantemente são construídas a partir do egoísmo e do individualismo capitalista. Enquanto se pensar exclusivamente no lucro, não haverá espaço para pensar no bem comum, dizia um dos senhores na rua ( na alimentação melhor, na saúde, na educação de verdade etc.). Todos esses avanços o país socialista conseguiu. Todavia, não conseguiu aniquilar, por completo, relações sociais individualistas, cujo os germes são facilmente perceptíveis tanto nos Estados capitalistas quanto nas economias planificadas. Por essa razão, são grandes os desafios para a ilha socialista, após mais de 50 anos da revolução, no momento em que não sabemos se as relações com os EUA se mostrarão favoráveis a oxigenar a economia cubana, ou se, pelo contrário, poderá embarcar cuba num caminho sem volta para um modelo de economia capitalista, que certamente não garantiria a permanência dos ganhos sociais existentes. Entretanto, tudo ainda é muito provisório e não se pode prever com seguridade o que virá. Com a ampliação da importância da ilha enquanto entreposto comercial dos EUA, sobretudo após a construção do porto de Mariel, abre-se a possibilidade de abertura, embora não indique que Cuba abandonará a forma de regime existente no País". Com as palavras do escritor cubano Leonardo Padura encerro este ensaio: "Cuba não é o paraíso socialista nem um inferno comunista, está mais para um purgatório onde na realidade as coisas podem ser um pouco mais normais".
Apesar dos equívocos cometidos, à época, em que a pressa de escrever à mão, não me permitiram uma análise mais profunda e detalhada sobre os legados revolucionários inscritos nas memórias do museu da Revolução, em Havana, nos monumentos da Plaza de la revolución, nos outdoors que denunciavam o embargo e, principalmente, nas experiências dos trabalhadores, sejam os que eu dialogava na rede hoteleira, sejam os das ruas, ou até mesmo do setor de transportes. Diante de tantos erros, acredito ter compreendido, desde aquele momento, que Cuba não poderia ser entendida por si só, desvinculada do contexto mundial injusto, no qual a acumulação de capitais se sobrepõe à vida, todos os dias, e tal fato nem sempre nos indigna como deveriam. Só para ficar num exemplo: países como o Haiti, que passa por ondas de instabilidades e beira à guerra civil, até pouco tempo, não tinha aplicado nenhuma dose de vacina contra a Covid-19, fato semelhante a cerca de 130 países pobres no mundo(1) enquanto empresas famacéuticas lucram e países ricos estocam vacinas; ou até mesmo enquanto alguns bilionários que, entediados aqui na terra, buscam aventuras turísticas bilionárias no espaço. Mas nem por isso aparecem questionamentos sobre os limites civilizatórios e o caráter restritivo às liberdades individuais proporcionado pelo capitalismo e pelos países assim chamados liberais-democráticos.
O que de fato se
tem é que uma certa falta de liberdade existente em Cuba, que mostra limites na
experiência do socialismo real - sobretudo no contexto de isolamento atual -
não se dá pela falta de neoliberalismo, de um consumismo insano à americana, ou
até mesmo pele ausência do modelo das democracias ocidentais que permitiram
figuras como Trump e Bolsonaro se manterem no poder, mesmo depois de crimes
gritantes contra a humanidade, como trancafiar crianças imigrantes para
separá-las dos pais (EUA), matar 550 mil e fazer apologia explícita ao nazismo
(Brasil)(2). Tal visão de liberdade e democracia, restrita ao poder de
compra e reduzido a um número residual de pessoas que podem circular pelo
mundo, não pode ser usada contra o povo cubano como se todos brasileiros (por
exemplo) pudessem viajar para Paris, se hospedarem em hotéis e pagarem
ingressos de 20 euros para entrar no Louvre.
Como lembrou-nos
Mauro Iasi (3), não se trata de apenas amar ou odiar a ilha que invoca tantas
visões deturpadas, seja pela deformação ideológica dos apologistas do capital,
seja pelas visões apaixonadas dos que sonham um mundo substancialmente livre
das opressões, tendo Cuba como um espelho. Como viver é tomar Partido, como
fazia Gramsci ao fugir dos "pântanos lodosos dos indiferentes"(6), me
aproximo deste último quadro, porque também sonho na emancipação humana e
percebo que os trabalhadores cubanos nos mostram muitos caminhos, nos quais
deve presidir a solidariedade, desde as sociabilidades cotidianas até as
escalas mais amplas.
Entretanto, não se
pode cair no raciocínio anti-histórico de uma certa concepção cristalizada de
(anti)marxismo que, por não perceber a dialética contraditória dos processos,
prefere colocar debaixo do tapete os sérios problemas que vêm assolando a
classe trabalhadora cubana assinalados pelas manifestações(6). Mesmo sob o
pretexto de defender o socialismo, acabamos por destruí-lo quando tomamos Cuba
(ou qualquer outro país) enquanto um modelo inexorável a ser seguido; quando
nos utilizamos de concepções autoritárias para justificar mesmo que os mais
nobres projetos; quando não compreendemos o princípio de superação dialética
tanto na análise sobre as formas societais capitalistas quanto as experiências
de socialismo real. Em suma, este último princípio sinaliza que os avanços
obtidos na sociedade devem ser mantidos, aprimorados, estendidos e recriados a
partir de circunstâncias sempre renovadas que a história humana produz em seu
intercâmbio com a natureza. Cuba e seu povo nos ensinam, até hoje, sobre
solidariedade e fraternidade entre os povos e trabalhadores. Após 68 anos após
da tomada do quartel Moncada, pelos opositores da ditadura de Fugencio Batista,
que cuminaria na Revolução Cubana, tal legado, não pode ser descartado se
quisermos criar algo ainda inédito na sociedade planetária: a emancipação
humana.
De onde vem esse interesse tão grande em Cuba, uma pequena ilha que não atrapalharia em nada a vida dos que queiram viver e/ou morrer sobre os grilhões capitalistas e seus fetiches, que se ancora numa liberdade restrita e incipiente?
A não ser que a grandeza de Cuba advenha dela representar um símbolo, que todos achavam que jazia sem vida: o espectro do comunismo, da solidariedade, do bem comum.
Estes termos, por estarem muito poluídos pela desinformação, acabam atrapalhando o entendimento. Para aclarar: o comunismo seria o bem comum universal. O bem-estar social acima do lucro privado; a reconstrução das relações internacionais baseadas na solidariedade e não no oportunismo de derrubar adversários e exaltar aliados; a apropriação equitativa sobre os produtos e tecnologias legadas pelo trabalho, ciência e conhecimento; enfim, o comunismo levaria às últimas consequencias uma máxima muito repetida, mas por poucos compreendida: a todos conforme suas necessidades e de todos conforme suas possibilidades. Tal quadro ideal seria o comunismo materializado na sociedade planetária.
Mas o que Cuba tem a ver com isso? Por que o espectro cubano incomoda tanta gente e todos os meios de comunicação que, ao se calarem em relação ao seus altruísmo e êxitos, com as manifestações, não perderam tempo em taxá-la de "ditadura comunista"? Isso significaria uma tentativa de, por tabela, revogar a potência do comunismo e também eternizar a esfinge capitalista, colocando o capitalismo como destino inexorável? Como tal pensamento é a-histórico, tecemos estas considerações por considerarmos os limites e possibilidades trazidas pela histórica sociedade cubana.
No texto "Vivir para contarla" (referência ao livro de Gabriel Garcia Marques), que escrevi, há cerca de seis anos, quando voltava de viagem a Cuba, não exitei em arriscar uma avaliação sobre o que se passava na ilha, bem como o que se projetava para o futuro, com uma tendência à reabertura, algumas aproximações de países como o Brasil e sinalizações de suavizar o embargo pelos EUA, durante o período Obama:
"Após 8 dias em Cuba, posso contar algumas experiências que tive, sobretudo em Havana. Entre tantas, como enxergar paisagens constituídas de casas e automóveis antigos, as que mais me causaram espanto foram as conversas com o povo cubano. Não com os dirigentes ou os chefes do poder, mas as pessoas comuns que caminhavam pelas ruas da capital, seja vendendo frutas, catando papelão e/ou simplesmente passeando. Creio que no modo de vida de tais sujeitos está a chave para entendermos o que se passa no país socialista e o que se projeta para o futuro com o fim do embargo. A fala mais significativa que identifiquei versava sobre a complexidade de entender Cuba neste instante, pois para esse intento se fazia necessário compreender algumas relações sociais existentes na cotidianidade do país que, em substância, não se distinguem das existentes num Estado de economia aberta como o Brasil, ainda que sejam distintas as formas de organização social e política entre ambos. Neste sentido, entendi que não se trata de ser favorável ou contrário ao modelo cubano, mas de compreender tal realidade a partir de suas contradições, possibilidades e limites(de recursos causados pelo embargo e naturais), mas também pelas conquistas proporcionadas pela Revolução, especialmente em relação saúde e educação(só para ficar em dois exemplos inquestionáveis). Cuba deve ser pensada no contexto mundial, onde as relações sociais predominantemente são construídas a partir do egoísmo e do individualismo capitalista. Enquanto se pensar exclusivamente no lucro, não haverá espaço para pensar no bem comum, dizia um dos senhores na rua ( na alimentação melhor, na saúde, na educação de verdade etc.). Todos esses avanços o país socialista conseguiu. Todavia, não conseguiu aniquilar, por completo, relações sociais individualistas, cujo os germes são facilmente perceptíveis tanto nos Estados capitalistas quanto nas economias planificadas. Por essa razão, são grandes os desafios para a ilha socialista, após mais de 50 anos da revolução, no momento em que não sabemos se as relações com os EUA se mostrarão favoráveis a oxigenar a economia cubana, ou se, pelo contrário, poderá embarcar cuba num caminho sem volta para um modelo de economia capitalista, que certamente não garantiria a permanência dos ganhos sociais existentes. Entretanto, tudo ainda é muito provisório e não se pode prever com seguridade o que virá. Com a ampliação da importância da ilha enquanto entreposto comercial dos EUA, sobretudo após a construção do porto de Mariel, abre-se a possibilidade de abertura, embora não indique que Cuba abandonará a forma de regime existente no País". Com as palavras do escritor cubano Leonardo Padura encerro este ensaio: "Cuba não é o paraíso socialista nem um inferno comunista, está mais para um purgatório onde na realidade as coisas podem ser um pouco mais normais".
Apesar dos equívocos cometidos, à época, em que a pressa de escrever à mão, não me permitiram uma análise mais profunda e detalhada sobre os legados revolucionários inscritos nas memórias do museu da Revolução, em Havana, nos monumentos da Plaza de la revolución, nos outdoors que denunciavam o embargo e, principalmente, nas experiências dos trabalhadores, sejam os que eu dialogava na rede hoteleira, sejam os das ruas, ou até mesmo do setor de transportes. Diante de tantos erros, acredito ter compreendido, desde aquele momento, que Cuba não poderia ser entendida por si só, desvinculada do contexto mundial injusto, no qual a acumulação de capitais se sobrepõe à vida, todos os dias, e tal fato nem sempre nos indigna como deveriam. Só para ficar num exemplo: países como o Haiti, que passa por ondas de instabilidades e beira à guerra civil, até pouco tempo, não tinha aplicado nenhuma dose de vacina contra a Covid-19, fato semelhante a cerca de 130 países pobres no mundo(1) enquanto empresas famacéuticas lucram e países ricos estocam vacinas; ou até mesmo enquanto alguns bilionários que, entediados aqui na terra, buscam aventuras turísticas bilionárias no espaço. Mas nem por isso aparecem questionamentos sobre os limites civilizatórios e o caráter restritivo às liberdades individuais proporcionado pelo capitalismo e pelos países assim chamados liberais-democráticos.
Fonte Original - https://sensiveis-as-primaveras-marginais-do-mundo.webnode.com/l/cuba-como-um-purgatorio-onde-as-coisas-podem-ser-um-pouco-normal/
Referências
1-https://g1.globo.com/bemestar/vacina/noticia/2021/02/17/130-paises-ainda-nao-tem-vacina-contra-a-covid-19-e-chefe-da-onu-sugere-plano-mundial-de-vacinacao-para-diminuir-desigualdade.ghtml
2-https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2021/07/26/abraco-de-bolsonaro-em-deputada-de-partido-neonazista-alemao-excita-fas.htm
3-Mauro Iasi. Ode de amor a Cuba https://blogdaboitempo.com.br/2021/07/16/ode-de-amor-a-cuba/
4-Leonardo PAdura. Um grito | Padura escreve sobre as manifestações em Cuba
https://blogdaboitempo.com.br/2021/07/16/um-grito-padura-escreve-sobre-as-manifestacoes-em-cuba/
5-GRAMSCI, A. Odeio os indiferentes. São Paulo: Boitempo, 2021.
6-Luiz Carlos Pericás. As manifestações em Cuba. https://blogdaboitempo.com.br/2021/07/15/as-manifestacoes-em-cuba/
1-https://g1.globo.com/bemestar/vacina/noticia/2021/02/17/130-paises-ainda-nao-tem-vacina-contra-a-covid-19-e-chefe-da-onu-sugere-plano-mundial-de-vacinacao-para-diminuir-desigualdade.ghtml
3-Mauro Iasi. Ode de amor a Cuba https://blogdaboitempo.com.br/2021/07/16/ode-de-amor-a-cuba/
4-Leonardo PAdura. Um grito | Padura escreve sobre as manifestações em Cuba
https://blogdaboitempo.com.br/2021/07/16/um-grito-padura-escreve-sobre-as-manifestacoes-em-cuba/
5-GRAMSCI, A. Odeio os indiferentes. São Paulo: Boitempo, 2021.
6-Luiz Carlos Pericás. As manifestações em Cuba. https://blogdaboitempo.com.br/2021/07/15/as-manifestacoes-em-cuba/
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