MINHA TERRA TEM PAU D’ARCOS E ALGUNS POUCOS SABIÁS

Fotos e texto: Alexandre Moca
Contarei e cantarei  a florada dos pau d’arcos enquanto existirmos, elas e eu. Elas, desabrochadas na copa de suas árvores enraizadas nos solos drenados das encostas da Serra da Jurema e em outras serras, nas cercanias da minha aldeia. Elas que nos finais de ano se exibem,  belas e pontuais. 
Tal qual os pau d’arcos, aqui também finquei raízes e estas se tornaram  vigorosas e profundas, talvez por ter sido banhadas e nutridas pelo que foi o dadivoso aluvião do  rio da aldeia, hoje morto pela minha inação e  pela omissão e desleixo de tantos outros aldeões.
Estas árvores, a despeito dos invernos cada vez mais escassos, vão buscar nas entranhas da terra a  força necessária para exibirem a beleza das suas flores brancas, amarelas e roxas, novembros a fio, dezembros seguidos, esbanjando  exuberância, presenteando  a cidade aniversariante espraiada no  sopé, semiárida e brejeira, piemontesa chamada também  de rainha.
Não acredito  que passe despercebido pela maioria dos nossos aldeões este espetáculo que, mesmo efêmero, singular e de minguante beleza, grita por um olhar preservacionista. Se a cena descrita deixasse de importar, estaríamos acometidos de uma síndrome coletiva rara, como raras costumam ser quase todas as síndromes. 

A doença impediria o nosso cérebro de processar as imagens e de conectá-las aos nossos corações as fazendo sentidas. Sendo assim,  de nada   adiantaria a beleza das coisas, das pessoas, das paisagens.

Se já são poucos os pau d’arcos, o que dizer  dos sabiás, os do papo alaranjado,  cantadores da esperança, anunciadores da chuva. Seu canto é música para os ouvidos de quem se aventura pelas velhas trilhas da Serra, secularmente compactadas pelo pisoteio dos mulos de carga. As mais íngremes, bonitas e escondidas delas,  descortinam belas paisagens e constituem um testemunho da coragem e da esperteza dos aguardenteiros e rapadureiros, no jogo de gato e rato com o fisco de então.
Casas de morro acima. A cidade avança sobre a serra, que virou plantação de antenas e espaço para um tipo de fé em extinção, só não mais que os pau d’arcos e os sabiás. 
A água de morro abaixo sobre o solo descoberto dos loteamentos consentidos e chancelados pelo poder público,  vai abrindo sulcos profundos sobre o terra nua, expondo a  fragilidade  da rocha, exibida como um troféu à insanidade. 
Como um Saara que lança areia do deserto sobre Roma, a rocha liquefeita acabará por escorrer nas enxurradas, abarrotando as sarjetas e provocando o infarto dos bueiros como já o faz há algum tempo. O que hoje é serra poderá ir parar no leito morto, assoreando ainda mais o que restou da calha  natural. O rio, que fatia em duas porções  o urbano insano da nossa aldeia, tornou-se motivo da nossa vergonha e atestado da nossa incompetência, tanto que demos as costas para ele, demos de ombro, fizemos cara de paisagem.
Se já são raros os sabiás empoleirados nos poucos pau d’arcos que restam na Serra, o que dizer daqueles outros sabiás, que se empoleiravam em toscos palanques improvisados sobre tambores de querosene ou em carrocerias de caminhão e com o seu canto anunciavam o futuro, tal qual os sabiás laranjeira anunciam o inverno.
Para onde foram eles ? Para que outro habitat migraram ? Será que foram extintos ? Quem seria o ornitólogo capaz de nos dar essa resposta ?  
Desse tipo específico  de fauna à qual me refiro agora, sobraram umas poucas aves de maior porte, que acabaram se tornando de rapina. Não possuem canto ou encanto que traga alento aos nossos ouvidos e que não  inspirem outro sentimento,  a não ser o de medo do predador. 
Quanto nos faz falta, de vez em quando,  o trinado e o gorgeio ébrio de uma “avis rara” que em delírio fez uma escolha: Guarabira ou Paris, estabelecendo o paradigma entre a aldeia cuja padroeira é a  Senhora da Luz e a cidade Luz, no velho mundo, colocando-as no mesmo plano, pelo menos enquanto duravam  os seus homéricos e quixotescos porres. 

Na esteira do desequilíbrio ambiental dessa fauna, proliferaram os  miúdos e acanalhados pardais, de plumagem feia e rabugenta, cuja algazarra pode ser vista e ouvida à distância, amplificada pelas rádios e pelas redes sociais. 

Enquanto disputam ávidos e a bicadas as migalhas e farelos que lhes sobram, tais aves, algumas  delas possuidoras até de delegação, são capazes de passar tardes/noites a fio, cuidando apenas dos  seus próprios interesses, cinicamente declarados. 
Para eles as manhãs, a chuva e a esperança não têm qualquer significado. Não lembram em nenhum momento o porquê e o para quê forçaram suas próprias escolhas como representantes. Mal sabem que são  a dieta predileta das grandes aves de rapina. 
Nesse espaço degradado, não cantam mais sabiás, sequer sobrevivem em ambiente tão iníquo.
Contudo, mesmo sem o talento dos sabiás, esboço meu canto e a minha esperança no futuro, pois habito os galhos dessa  árvore citadina onde fiz ninho e tirei a minha ninhada.
O 26 de novembro, data da nossa emancipação,  é como a florada dos pau d’arcos na Serra da Jurema. Chegam juntos e precisam ser mostrados, vistos e, acima de tudo,  preservados, como símbolos vivificantes da nossa senda. Constituem, neste particular,   um presente  e uma provocação ao nosso olhar  cada vez  mais semiárido, ressecado e ressabiado.
Parabéns Guarabira !

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