*Que os mortos tenham direito de votar*
Essa é uma das mais belas passagens de Jacques Lacan. Trata-se do momento em que ele *descobriu haver algo pior que a morte. Pior que a morte havia a morte da morte, havia o ato de matar a morte, ou seja, impedir que a morte pudesse ocorrer, com seu luto*, com seu acolhimento simbólico, com seu dolo, com seu dever de memória. Nesse caso, era como se sujeitos fossem *mortos pela segunda vez*. Não só a morte física mas uma ainda pior, ainda mais brutal: a *morte simbólica*.
O Brasil viu então o horror de um *governo que lutava contra a vacinação de seu próprio povo*, que *zombava de suas mortes*, que *sabotava as tentativas da sociedade de se autodefender*, que escondia números, que *“desaparecia” corpos* enquanto fazia de tudo para preservar os rendimentos da elite rentista, do sistema financeiro, dos empresários da corte. Um governo que matava a morte. O resultado foi inapelável: mesmo levando em conta apenas os números incertos que conseguimos levantar, descobrimos que tínhamos *3% da população mundial e 15% das mortes por covid no mundo* *(5x).*
No entanto, eis que eles continuam e, anos depois, ameaçam ser reeleitos. Uma reeleição que significaria jogar na vala comum todos os que morreram por irresponsabilidade e indiferença do Estado, deixar seus corpos sem sepultura apodrecendo a céu aberto. *Corpos sem memória*. Significaria o crime aterrador de *esquecer e perdoar quem os matou, não uma, mas duas vezes*. Os gregos tem uma bela tragédia, *Antígona*, a respeito do que deve (e esse “deve” está aí por rigor) ocorrer *quando uma sociedade vê como possível matar duas vezes alguém. Ela deve desaparecer.* Ela *perdeu toda e qualquer substância ética*, é só uma *associação de "assassinos sem maldade e vítimas sem ódio", como dizia Günther Anders*.
Por isso, *amanhã não votarão apenas os vivos, votarão também os mortos*. Ressurretos por um momento, eles segurarão a mão da insanidade como quem diz: *“Nós não seremos mortos uma segunda vez.”* E será *essa ressureição dos mortos que salvará o que sobrou de nossa sociedade brasileira, que nos permitirá começar a construir outra sociedade a partir dos escombros* dessa que já terminou. Nesses paradoxos tão estranhos quanto belos, *quando uma sociedade se encontra no seu mais profundo perigo, são os mortos que nos salvam*, é sua força de não se deixarem esquecer que preserva a abertura de nosso futuro. *Quando estivermos na cabine de votação, não estaremos sozinhos. Haverá 700 mil pessoas votando através de nosso gesto*. Há momentos em que uma eleição é apenas uma eleição. E *há momentos em que uma eleição é o gesto derradeiro de uma sociedade que usará da força de seus mortos para forçar as portas cerradas do futuro*.
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